sábado, maio 13, 2006

13 Maio 2006 - fim-de-semana














































































Moçambique não será apenas obra.
A beleza de algo não resulta da descoberta da sua forma aparente, mas da compreensão das partes que se unem para lhe darem existência (Artur Quaayayp)
Quando anunciei ao meu caro amigo e ex-professor do CRATerre, Sebastien Moriset, que ía construir um blog para deixar elementos sobre esta experiência, ele disse-me que, em vez de “perder” tempo agarrado a um computador, deveria era ir beber umas cervejas com a população para compreender melhor as pessoas e o que elas desejam e do que precisam. Disse-lhe que pretendia fazer isso e que sabia que ter essa consciência seria a única forma de as atingir com resultados benéficos, de as perceber e de conseguir, a pouco e pouco, construir um enredo e uma relação que possam ser, de facto, produtivas e compensatórias para estas pessoas, que pouco têm e muito gostariam de ter.
Nessa perspectiva estóica, toda a Laurentina que me chega às mão deixa de ser um desleixo boémio e passa a ser uma missão de trabalho, o que calha bem para a consciência responsável de europeu ocidental. E, para tentar compreender estes povos (os vários que se juntaram dentro desta fronteira e que convergiram para a zona de Maputo) este país e esta realidade, aproveita-se todos os momentos livres para “trabalho de campo”.
Neste fim-de-semana, nova incursão a Maputo (tal como no anterior) e à praia da Macaneta, a casa do Sr. Machado da Graça – iluminado e resistente jornalista local, e pai da minha cara amiga Sara - com apresentação pessoal ao Oceano Índico (o tal povoado de tubarões tigre, martelo e primos destes…)
As jornadas fora de Maputo e de zonas urbanas são entusiasmantes: Partir cedo para poder chegar a qualquer parte (o “já ali”, tão alentejano, também existe por cá, mas aqui aplica-se a 500km e um dia inteiro de viagem por estradas surreais). Não se aproximar demasiado dos rios, porque há jacarés com fartura e fome (fartura deles e fome neles..!). Nunca molhar, sequer, as mãos em poças, lagos ou ribeiros, por causa de parasitas, sobretudo a Matacanha. Pelas mesmas razões, não andar descalço (o mais provável, para quem quer ir à praia, é não ter escapa possível aos parasitas da areia, mas vale o custo). Depois ter muito cuidado com o sol abrasador, mas não beber água em nenhum lado, por causa de cólera, tifo, parasitas, coliformes, etc., etc. Ir ao banho no mar, mas sempre com o olho na linha da água, não vá andar por ali uma daquelas barbatanas triangulares muito comuns por estas águas. Sair para almoçar, mas lavar muito bem os legumes e tirar a casca à fruta. Encharcar-se em repelente, porque a malária abunda, e evitar o lusco-fusco, por ser o período de proliferação de mosquitos. Caminhar sempre pelos trilhos, para não se ouvir um “click”, mesmo antes de, na melhor das hipóteses, se perder uma perna. Mesmo assim, cuidado com os pezinhos, porque as “nhocas”, entre as quais a mamba – uma das serpentes mais perigosas do mundo, por ser territorialista e atacar apenas por se entrar no seu perímetro – andam por aí. Voltar para casa antes da noite, por causa da bandidagem, cuidado com as crateras na estrada e, sobretudo, com os polícias corruptos!
Ainda assim, a beleza é indescritível e a vida sabe a verdadeira, por estas partes.

sexta-feira, maio 12, 2006

12 Maio 2006 - Dia 04













































































A obra atrai-os bem mais do que a sala de aulas, o que não nos espanta minimamente (apesar de não estarmos à espera de que o nível de concentração e aprendizagem nas aulas teóricas fosse tão baixo assim). Mas, por sabermos que eles não iriam conseguir estar muito tempo encerrados numa sala, a encherem as medidas de conhecimentos teóricos novos, tivemos o cuidado de esboçar um programa que intercalasse componentes teóricas com práticas, permitindo uma “descompressão” de cada uma das partes, para evitar sobrecargas e consequentes desmotivações.
Assim, cada vez que introduzimos uma matéria mais pesada ou uma aula teórica mais prolongada, aliviamos a sequência com uma componente prática mais demorada. Por isso, depois da epopeia das triangulações e da marcação de níveis, resolvemos terminar a semana de forma mais ligeira, dedicando a parte da manhã à limpeza do terreno e à abertura de valas para fundações, seguida da colocação de uma camada de enrocamento para receber a viga de fundação, e dando a tarde livre – “borla”, como chamam por estas bandas ao que chamamos de “furo”.
Como o terreno é muito arenoso, é muito fácil de cavar e de formar as valas na perfeição, o que nos poupa tempo material e dinheiro, porque evita ter de fazer cofragens para a viga.
Apesar dos meus apelos, muitos dos alunos apareceram descalços na obra, havendo, inclusivamente, aqueles que vieram de chinelos ou sapatos, mas que os tiraram para trabalhar, para não os estragarem. Isto torna-se mais impressionante quando assisto à forma como esses cavam: Espetam a pá no terreno e calcam-na com o pé descalço, para a enterrarem bem! Pior ainda, só quando colocam o enrocamento de assentamento da viga de fundação e andam por cima da pedra partida descalços…
Quando a Patrícia chegar, na próxima semana, directamente da “velha Europa”, com as suas apresentações PowerPoint sobre Higiene e Segurança no Trabalho, receio que vá ter de executar um rápido e vigoroso golpe de rins…! É que ainda não registei aqui esse facto, mas o curso foi preparado para ser apresentado com forte componente gráfica, intensamente apoiado em apresentações PowerPoint, mas, no dia em que chegámos, não tínhamos projector data show, nem computador na sala (como previsto e anunciado), nem sequer giz e apagador para o quadro e, inclusivamente, nem sequer o próprio quadro, e nem mesmo a própria sala! (já para não dizer, como disse há alguns dias, nem sequer alunos!!!)
Mas, como sempre me convenço nas situações adversas, para não desanimar, ad augusta per angustia.
E, tal como os alunos na obra, também eu me sinto descalço, por aqui. Aliás, o livro com o qual nos temos identificado, nestes dias, é “O Arquitecto Descalço”, que é uma interessante obra que nos foi gentilmente emprestada pelo arqº Bartolomeu Costa Cabral e que propõe uma série (extensa) de soluções de recurso e semi-improviso para situações com poucos meios e recursos disponíveis, onde a construção também passa pela reinvenção de sistemas, pela adaptação de materiais e soluções, pela assemblagem e reutilização – em suma, pela feitiçaria e alquimia.

quinta-feira, maio 11, 2006

11 Maio 2006 - Dia 03















Para que os alunos possam, futuramente, executar obras “a sério”, em vez de os enviarmos directamente para uma espécie de clandestinidade, houve a preocupação de, neste curso, introduzir um programa que os inserisse no contexto dos procedimentos inerentes ao processo de uma construção e que possibilitasse a eficaz interacção com todos os possíveis parceiros nesse processo.
Assim, para além de aulas futuras em que se abordará temas como a segurança na obra, a organização de estaleiro, as medições, compra, armazenamento e gestão de materiais, equipamentos e recursos, hoje tivemos a primeira aula dentro desta vertente mais complementar do trabalho de construção civil, dedicada à correcta interpretação de desenho técnico, incluindo a compreensão das noções e características de desenhos de planta, corte, alçados e detalhes construtivos, e respectivos códigos de representação gráfica.
Procurando que todos os conhecimentos teóricos adquiridos durante as aulas sejam sempre enquadrados numa perspectiva muito prática e utilitária pelos alunos, procedemos, de imediato, à transposição dos desenhos de projecto do edifício a construir por eles para o terreno, introduzindo as técnicas e métodos de nivelamento do terreno, nomeadamente através da utilização da mangueira de nível e das estacas e guias de referência.
É gratificante constatar a súbita compreensão dos conhecimentos teóricos que a experiência empírica provoca nos alunos – sobretudo, e com maior intensidade e quase surpresa, naqueles com fracos níveis de escolaridade e menos habituados a estudar e a assimilarem informação teórica e conhecimentos científicos – dos doze alunos, apenas dois têm o 12º ano (ou classe, como por aqui se diz), um tem o 9º, dois têm o 8º, três têm o 7º, outros três têm o 6º, e um tem apenas o 5º!

quarta-feira, maio 10, 2006

10 Maio 2006 - Dia 02

































































Noções de geometria, sistema de triangulação e regra 3-4-5, para marcações no terreno.
Depois, exercícios reais de marcação de plantas “inventadas”.
Alguns deles ontem já perguntavam “Vamos só escrever? Não vamos fazer nada prático?”
Note-se que isto foi cerca de 15 minutos depois de começarmos a primeira aula teórica…
De facto, só dois alunos têm o 12º ano, e os outros variam, havendo mesmo quem tenha apenas o 5º.
E nem pensar em fazer paralelismos com o nosso ensino, porque o nível é, de facto, muito baixo, quer em termos de conhecimentos adquiridos, quer, inclusivamente, em termos de capacidades de raciocínio científico, de aprendizagem, de concentração e de espírito crítico…
Acrescente-se que muitos deles escrevem muito mal (mesmo muito mal) e alguns nem falam nem percebem português com facilidade plena (e os meus conhecimentos de Ronga e de Xangana ainda são escassos…)
Da parte da tarde, marcação de eixos no terreno de obra.
Entretanto, dadas as condições e todo o contexto, achámos por bem alterar o projecto radicalmente – na sua forma, implantação e, inclusivamente, função.
A ideia inicial era a de construir uma casa para uma das famílias, servindo essa de protótipo para outras futuras.
Isto encerrava dois problemas “filosóficos”:
O primeiro era que, se queríamos que a construção fosse pedagógica, ela teria de abarcar uma série de situações possíveis e de enfrentar uma série de dificuldades técnicas criadas previamente com o intuito de aguçar o engenho dos formandos na sua resolução. Isto originaria que a casa a construir fosse maior, melhor e mais elaborada que as existentes (que são de condições muito insatisfatórias – mesmo para casas de realojamento…), o que poderia dar azo a mecânicas sociais pouco positivas, dentro do bairro (sobretudo dando origem a sentimentos de privilégio ou injustiça, uma vez que as casas são atribuídas igualmente a todas as famílias).
O outro problema era o de se poder vir a entender que a utilização de terra crua na construção (presente nas populações rurais noutras partes do país) era, de alguma forma, um retrocesso face à utilização do betão, e que isso constituía um abandono da qualidade das construções atribuídas.
Para evitar estes possíveis problemas, resolvemos construir um edifício de apoio à casa existente destinada a receber os voluntários que para aqui vêm trabalhar na comunidade por períodos mais ou menos demorados.
Esta casa dos voluntários é, actualmente, a única (para além dos alojamentos da comunidade religiosa que rege este bairro) que tem água canalizada e instalações sanitárias incorporadas – as restantes casas do bairro têm um sistema de latrinas (individuais, por cada fogo) no fundo da machamba (horta).
Assim sendo, mostrar à comunidade que estas pessoas “evoluídas”, vindas do “ofuscante mundo ocidental” e com capacidade económica para virem até Moçambique “passar uns tempos a ajudar os pobrezinhos” escolheram a terra como material para construir a sua própria casa, onde vão ficar alojados, mesmo depois de já terem uma em betão, pode ser o melhor catalizador para a futura aceitação desta técnica na zona.
Como quando se apresenta um projecto a um cliente: não chega que ele goste, é preciso que ele o passe a desejar!

Entretanto, continuamos a tentar que o material seja acabado, comprado, construído…

terça-feira, maio 09, 2006

09 Maio 2006 - Dia 01
























































Primeira aula, um dia depois do previsto, o que já não é mau, tendo em conta a situação que encontrámos quando cá chegámos…
Quando chegamos à sala – que ontem conseguimos tomar de assalto, a muito custo, para as nossas aulas teóricas - não temos carteiras, nem giz, nem apagador, como tinha ficado prometido…
A desorganização e a falta de rigor e de noção de prazos e de tarefas para cumprir é tão grande que, por estes dias, me sinto como se sentirá um suíço em terras lusas…
Mas rapidamente me agarro às origens lusas e, à medida que os alunos vão chegando a pouo e pouco, vou enviando um par deles às salas que estão em intervalo para saquearem carteiras desocupadas. A partir deste momento, até ao final do curso, em Agosto, nunca poderei deixar a sala sem a trancar com o cadeado, sob risco de perder carteiras, giz e apagador (também saqueado). Afinal, África é um continente selvagem, ou não é assim?
Ao longo do início da manhã os alunos chegam e rapidamente são doze.
Introdução do curso, apresentações, as (in)formalidades do costume…
E uma abordagem às características gerais da construção – as partes constituintes de um edifício e sua caracterização.
Depois, introdução ao estudo dos materiais.
Fixou-se o horário das aulas da seguinte forma:
07h30 – 09h30
10h00 – 12h30
14h30 – 16h30
Acordar às 6h30 é um novo desafio para um profissional liberal, arquitecto por conta própria, sempre romanticamente convencido de que o trabalho nocturno rende mais e é mais inspirador.
Agora acordo à hora a que antes me deitava muitas vezes…
Enfim, já que aqui a lua cresce sem mentir, o sol brilha a Norte e a água gira ao contrário nos ralos, porque é que não hei-de inverter todos os resquícios de hemisfério norte…?


Há alguns alunos do curso profissional de construção civil que virão frequentar algumas aulas teóricas do nosso curso, desde que não coincida com o horário deles.
O curso deles não é muito evoluído e, de facto, a própria habilitação dos professores deixa muito a desejar.
Mas alguns são interessados e ambiciosos, o que é uma boa combinação.

segunda-feira, maio 08, 2006

Preâmbulo



































Afinal sempre temos alunos.
Após alguns esforços, o curso encheu-se de jovens desocupados e com poucas esperanças no futuro. O mundo da construção é uma solução aliciante, e quando sabem que aprenderão uma técnica com muitas potencialidades e com pouca mão-de-obra especializada existente na zona, os apetites aguçam-se.
Doze jovens, com idades compreendidas entre os 15 e os 25 anos, inscrevem-se num ápice.
A partir daqui, começámos a fazer uma espécie de entrevista e a preencher fichas individuais, onde procurávamos, de uma forma suave, saber um pouco sobre cada um deles: origem, nível de escolaridade, experiência profissional, conhecimentos gerais sobre construção, técnicas tradicionais e/ou locais que conheçam ou tenham praticado ou visto praticar, e quem pensam que vai ganhar o mundial da Alemanha – aqui a resposta é, esmagadoramente, Portugal. E não é por favor, é genuína, que aqui segue-se os jogos da bola lá do jardim lusitano, como poucos Zés do bairro o farão…!
As conversas sobre as técnicas tradicionais levam alguns a largarem um orgulho que eles próprios desconheciam sobre a sua cultura e sobre práticas que julgavam serem desprezíveis e obsoletas.
Agora tempos de conseguir os outros ingredientes para o curso, incluindo uma sala…
Para meu deleite, conseguimos reclamar a sala de escultura para nós, durante os próximos 3 meses.
Não se preocupem os artistas, que a actividade escultórica não se desenrola actualmente nesta escola, por isso não estamos a matar a arte em nome da técnica, como alguns arquitectos por vezes fazem…