sexta-feira, junho 16, 2006

16 Junho 2006 - Dia 30






















































































Foto: Francisca Baptista da Silva

Dia grande! Primeiro dia de taipa.
A ansiedade e o entusiasmo são grandes.
A taipa começa por dar os primeiros sinais de qualidade, porque resolvemos utilizar quatro dos blocos de ensaio para apoio do crivo, para termos altura para colocar um carrinho de mão por baixo – isto porque o caixilho para o crivo foi feito com dimensões diferentes das que pedi… Eu tinha deixado na carpintaria um desenho muito simples, que era apenas um rectângulo com o comprimento e a largura, e tinha dito: “Façam como quiserem, desde que tenha estas dimensões e dê para pregar uns pregos”. E, contudo…
Como os trabalhos do embasamento estavam já a ser demasiado complicados, acabámos por fazer tudo da forma mais simples e rápida, sem deixar os negativos para as agulhas do taipal e, por isso, este não será encaixado no muro de embasamento e, assim, a montagem na fiada de baixo é bem mais complicada e morosa.
Para além disso, ficamos com uma fisga de dois centímetros e meio (o diâmetro das agulhas) que temos de tapar com algumas pedras e um pouco de argamassa, que fazemos de cal e terra vermelha, a 1:3.
O problema é que a taipa só começou agora porque tive imensos problemas com a carpintaria, na execução do segundo frontal, que é suposto ser em cunha, para utilizar nos remates de vão, mas que saiu todo errado e teve de ser emendado. Mesmo agora, não acredito que resista a toda a obra, para além de ser demasiado curto, de ter a travessa onde não devia ter, o que impede que seja usado nos dois sentidos, e uma série de outros problemas que tento resolver.
Como estou a sentir o tempo a passar perigosamente, pego eu próprio no serrote, no martelo e formão e na grosa, e tento ter um frontal apto.
Mas o pior está por ser descoberto…
Não sei se foi por erro de cálculo, se por distracção, se por erro na construção do taipal, mas há um desfasamento entre as medidas do equipamento e as de projecto. Isto deve ser fruto de tanta cambalhota que já teve de ser dada para se ter o material e para se fazer as coisas e, algures durante o processo, um detalhe ficou baralhado. Faz-me lembrar a eterna questão do Blade Runner, em que é dito, no início, que seis replicants fugiram, um morreu durante a fuga e os outros cinco andam a monte e, depois, o Rick Deckard abate apenas quatro (Zora, Leon, Pris e Roy Batty) e as teorias sucediam-se: o quinto era a Rachel, ou era o próprio Deckard. Tudo especulações, algumas com raciocínios interessantes por detrás, mas vim a descobrir, lendo algumas coisas sobre o filme, que o próprio realizador confessa que foi um lapso que passou despercebido, fruto de o argumento ter sido inteiramente reescrito e alterado…!
Ora, aqui também reescrevemos e alterámos o argumento tantas vezes, que alguém, algures, se deve ter esquecido de um replicant por aí…
A questão, afinal, é que o taipal foi construído com um comprimento de 1,50m e o projecto foi desenhado com uma modulação de 1,60m.
Para quem não está por dentro destes assuntos, imaginem só a diferença que existe, em termos de esforço e tempo, entre colocar uma série de azulejos de 16cmx16cm num quadrado de 32cmx32cm ou, para esse mesmo quadrado, utilizar azulejos de 15cm, por exemplo…
O que é um facto, é que as fundações estão construídas com uma modulação de 1,60, e agora temos de nos amanhar com um taipal de metro e meio. Mais jazz em improviso. O problema, é que o bar onde estamos a tocar tem encerramento marcado e o concerto acaba dentro de poucas semanas – este gasto adicional de tempo vem muito pouco a favor…
Como o tal frontal para os vãos ainda não está ultimado (como por aqui se diz), damos início à vida de taipeiros destes jovens por um cunhal da casa, com um taipal em rampa. Para quem percebe um pouco destas coisas, já se está a ver que este erro de métrica (sendo que o taipal é mais pequeno do que a distância a vencer e não o contrário) vai obrigar a mais taipais e mudanças de taipal e muuuuuitas rampas…
Mas o entusiasmo é muito, e o descofrar do primeiro taipal é uma verdadeira emoção, mesmo se eles já esperavam o efeito, por terem feito 13 blocos de 30x30x30cm, nos ensaios.
Para marcar o momento, numa brincadeira moralizante, resolvo passar uma folha por todos, para a assinarem e, depois de também eu a assinar, dato-a e coloco-a num plástico transparente e dentro do primeiro bloco de taipa, a meio do seu preenchimento. Todos ficam felizes por ficarem “imortalizados” naquela massa imponente que nasceu das suas próprias mãos.
Aliás, a emoção telúrica desta obra sente-se mais nestes miúdos, por ser a primeira vez que se confrontam com este tipo de construção, e isso está no que dizem às (muitas) pessoas que passam e se acercam do local, para tentarem perceber que raio de fortaleza é esta: “Isto é a terra do chão, pilada por nós, à mão, com o nosso suor!”
Lembra-me um momento particularmente simbólico que presenciei, há bem pouco tempo, quando tive oportunidade de visitar uma obra de taipa em curso, com projecto do arqº Bartolomeu Costa Cabral, colega e parceiro do arqº Nuno Teotónio Pereira e, tal como este, figura maior da arquitectura portuguesa, por quem tenho enorme admiração e simpatia. Era uma obra em Beja e, com uma modéstia admirável, ele tinha pedido alguns conselhos a quem anda por estes temas, mais assiduamente à arqª Teresa Beirão, e eu fui com ela ver o andamento da obra, num dia em que ele lá estaria. A uma certa altura, julgo que ao telefone, lembro-me de o ouvir dizer que sentia uma emoção muito especial ao presenciar a génese desta massa imponente, que vinha da própria terra. As palavras não terão sido exactamente estas, mas o conceito era-o e tocou-me particularmente, sobretudo por se tratar de quem se tratava.
Realmente a componente emocional de uma obra de taipa é pouco racionalizável (obviamente, por definição), e mais ainda no caso daquela em que participo aqui, por se tratar de uma obra totalmente artesanal e em espírito de “desenrascanço”, e por ser feita por miúdos sem qualquer experiência nem conhecimentos prévios, e que não tinham grandes expectativas de futuro. Essas expectativas começam agora a surgir nalguns deles, cada vez mais, à medida que o gosto por esta técnica se desenvolve e cresce um orgulho e uma postura briosa em relação ao trabalho que fazem.
Como não tenho nenhuma ansiedade especial para o fim-de-semana que se avizinha, pergunto aos alunos se querem vir no sábado de manhã fazer mais um pouco de taipa.
Alguns dizem que sim e a noite passa-se no Centro de Lazer, na festa de despedida da Francisca – alma maior que por estas bandas esteve nos últimos três meses, como voluntária a desenvolver um trabalho excelente de recenseamento e actualização de dados das crianças do bairro, para o projecto de apadrinhamento de crianças com carências (leia-se todas!) e que agora ruma ao Xai-Xai, algumas centenas de quilómetros ao norte daqui, na costa, onde nos últimos dias apareceu um hipopótamo na praia, que foi arrastado pela corrente do rio que desagua mesmo lá ao lado. Para quem não sabe, o animal que mais mata em África é o hipopótamo (se excluirmos o mosquito da malária, que não extermina directamente nem no momento exacto do ataque, e também o homem, que é um animal muito particular) e isto porque é muito territorialista e, apesar de inofensivo em situações comuns, não se queiram meter entre um e o seu charco…! Claro que a boa da populaça tratou logo de matar o bácoro de água e, segundo ouvi dizer, andam há uns bons dias a comer hipopótamo por aquelas bandas.Obrigado à Francisca pelo esforço na ajuda à preparação do nosso curso – foi com ela que trocámos informação antes da nossa vinda e foi ela que transmitiu as nossas indicações a todos os intervenientes, incluindo os desenhos para execução do estojo de taipa e do adobeiro.

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