sábado, junho 17, 2006

17 Junho 2006 - Fim-de-semana
















Desta vez só aparecem quatro voluntários para o trabalho da manhã de sábado, mas não esperava muitos mais, porque eu ontem apenas disse a alguns que iria continuar com a taipa hoje de manhã, e disse-o já no final do dia, quando outros tinham já ido para casa, de fim-de-semana. Mas ainda bem, porque dos quatro que aparecem, três são dos melhores alunos, e daqueles em que eu deposito mais esperanças. E assim, podemos fazer tudo com mais calma, desde a montagem do taipal à mistura, à compactação e à descofragem e rotação do taipal para nova montagem, de modo a que eles fiquem com uma noção muito mais sólida. Isto também tem um bom efeito secundário, que é eu poder ter uns alunos de confiança com conhecimentos mais sólidos que possam assumir o comando das operações em cada uma das frentes, já que na próxima semana vamos começar a dividir a turma em duas equipas que produzirão, de forma alternada e rotativa, taipa na obra e BTC no armazém, em pontos distantes. E como, apesar de todos os dias (sem excepção…!) ouvir três ou quatro vezes alguém chamar-me Šikwembu (Jesus) quando vou a passar, ainda não consigo estar em todo o lado ao mesmo tempo, vem mesmo a calhar algum apoio dos próprios alunos que me deixe tranquilo sobre o que se está a passar.
Mas a jornada é muito pouco produtiva, porque eu estive a trabalhar sozinho desde as 7h30, e só às 10h30 aparecem esses alunos, ainda por cima com uma ressaca monstra (babalaza), dos copos que bebemos ontem. Eu não sei se é por não terem dinheiro para os copos e, por isso, não estarem habituados a beber, ou se é por andarem subnutridos, ou se é por outra razão qualquer, mas quando bebo umas Laurentinas com os meus alunos, eles ficam kaut no início da segunda cerveja, e de ressaca no dia seguinte. Convenhamos que as Laurentinas que por aqui se bebe são de 550ml, mas ainda assim, temos de refrear a boémia etílica, sob pena de um dia destes algum dos alunos desmaiar para dentro do taipal e outro continuar a pilar, sem dar por nada, e o primeiro desaparecer para sempre, sem ninguém saber onde está e toda a gente ficar pensar “Olha, este taipal foi mais rápido a fazer…!”
Antes da sua partida definitiva, a Francisca experimenta finalmente, após toda a expectativa que criou, bater um pouco de taipa. Como toda a gente que nunca tinha pegado num pilão, a conclusão é sumária: “Isto é duro!”
Rumo a Maputo, descubro na bomba de gasolina que Portugal ainda está empatado a zero com o Irão, e não há maneira de conseguir chegar ao Núcleo de Artes, onde vou ver o resto do jogo, porque ando às voltas pelas ruelas de Maputo, na carrinha das irmãs, com o condutor de serviço, o Cremildo, a conduzir na sua placidez aparente, apenas quebrada quando mostra que acredita que todos os problemas do universo poderão ser resolvidos a partir do seu lugar de condutor com uso da buzina da carrinha, com a Francisca entre a sonolência pós festa de despedida da véspera e a nostalgia da partida (é que isto pega-se à pele e deve ser difícil sair de cá…! deixa ver em Agosto, quando for eu…), o Manuel (engº agrónomo que desenvolve um outro projecto no bairro), e uma das freiras que insiste em querer parar em todas as barraquinhas do caminho, porque alguém lhe pediu um sumo de uma coisa qualquer que ela não sabe o que é, mas que parece lixa…
Depois do jogo e de ter aterrado numa festa de despedida de solteiro de alguém que conhecia alguém que era amigo de alguém que eu acho que conhecia, fomos à Jam Session do Gil Vicente, onde pude tocar com um cantor que lá estava com a sua banda e que, segundo vim a saber, é uma lenda do blues por estes lados – o João Paulo. A personagem é, realmente, de carisma forte. Visualmente é uma espécie de Terence Trent D’Arby, em versão junky-cinquentão, e a pose, a interpretação e a voz são, de facto, de grande qualidade, assim como os bons músicos do resto da banda (que groove, aquele baixista!!). Depois de um pedido ao balcão, eis que o baterista (o organizador da sessão de jam) anuncia ao microfone que “parece que há por aí alguém que quer tocar uma música connosco, que é um tal de Mocho” (culpa da comitiva da tal festa onde eu estava), e eu lá saco da harmónica do bolso e foi blues por ali. Foi um sucesso, e já me fazia muita falta tocar um bocadinho – as únicas vezes que fiz o gosto ao dedo foi com a guitarra clássica das freiras, em Mumemo, com o Juan, um voluntário galego que toca flauta transversal, a tocar axeitame a polainiña e outras celtices de improviso. Agora, o blues é o blues! E então se houver electricidade…!
No final da noite, o internacional João Paulo (que parece que já tocou por todo o lado aqui e por fora) convidou-me para tocar com ele, num concerto que tinha na quarta-feira seguinte, mas disse-lhe que, estando a trabalhar todos os dias às 7h30 da manhã, longe de Maputo, sem transportes e a ter de ter a cabeça fresca para dar aulas e poder tomar conta dos acontecimentos, só mesmo se nos encontrássemos de novo a um sábado, para uma nova jam. Será que desperdicei uma promissora carreira como músico mulungo numa mulandi blues band em Moçambique?
A Francisca ficou com fotos do acontecimento, mas não tornei a encontrá-la, por isso prometo que porei aqui algumas imagens assim que as tiver.
Depois da aventura musical, mais uma aventura antropológica, com nova descida aos infernos impuros de Maputo, na zona da baixa. Afinal os filmes não exageram assim tanto…

sexta-feira, junho 16, 2006

16 Junho 2006 - Dia 30






















































































Foto: Francisca Baptista da Silva

Dia grande! Primeiro dia de taipa.
A ansiedade e o entusiasmo são grandes.
A taipa começa por dar os primeiros sinais de qualidade, porque resolvemos utilizar quatro dos blocos de ensaio para apoio do crivo, para termos altura para colocar um carrinho de mão por baixo – isto porque o caixilho para o crivo foi feito com dimensões diferentes das que pedi… Eu tinha deixado na carpintaria um desenho muito simples, que era apenas um rectângulo com o comprimento e a largura, e tinha dito: “Façam como quiserem, desde que tenha estas dimensões e dê para pregar uns pregos”. E, contudo…
Como os trabalhos do embasamento estavam já a ser demasiado complicados, acabámos por fazer tudo da forma mais simples e rápida, sem deixar os negativos para as agulhas do taipal e, por isso, este não será encaixado no muro de embasamento e, assim, a montagem na fiada de baixo é bem mais complicada e morosa.
Para além disso, ficamos com uma fisga de dois centímetros e meio (o diâmetro das agulhas) que temos de tapar com algumas pedras e um pouco de argamassa, que fazemos de cal e terra vermelha, a 1:3.
O problema é que a taipa só começou agora porque tive imensos problemas com a carpintaria, na execução do segundo frontal, que é suposto ser em cunha, para utilizar nos remates de vão, mas que saiu todo errado e teve de ser emendado. Mesmo agora, não acredito que resista a toda a obra, para além de ser demasiado curto, de ter a travessa onde não devia ter, o que impede que seja usado nos dois sentidos, e uma série de outros problemas que tento resolver.
Como estou a sentir o tempo a passar perigosamente, pego eu próprio no serrote, no martelo e formão e na grosa, e tento ter um frontal apto.
Mas o pior está por ser descoberto…
Não sei se foi por erro de cálculo, se por distracção, se por erro na construção do taipal, mas há um desfasamento entre as medidas do equipamento e as de projecto. Isto deve ser fruto de tanta cambalhota que já teve de ser dada para se ter o material e para se fazer as coisas e, algures durante o processo, um detalhe ficou baralhado. Faz-me lembrar a eterna questão do Blade Runner, em que é dito, no início, que seis replicants fugiram, um morreu durante a fuga e os outros cinco andam a monte e, depois, o Rick Deckard abate apenas quatro (Zora, Leon, Pris e Roy Batty) e as teorias sucediam-se: o quinto era a Rachel, ou era o próprio Deckard. Tudo especulações, algumas com raciocínios interessantes por detrás, mas vim a descobrir, lendo algumas coisas sobre o filme, que o próprio realizador confessa que foi um lapso que passou despercebido, fruto de o argumento ter sido inteiramente reescrito e alterado…!
Ora, aqui também reescrevemos e alterámos o argumento tantas vezes, que alguém, algures, se deve ter esquecido de um replicant por aí…
A questão, afinal, é que o taipal foi construído com um comprimento de 1,50m e o projecto foi desenhado com uma modulação de 1,60m.
Para quem não está por dentro destes assuntos, imaginem só a diferença que existe, em termos de esforço e tempo, entre colocar uma série de azulejos de 16cmx16cm num quadrado de 32cmx32cm ou, para esse mesmo quadrado, utilizar azulejos de 15cm, por exemplo…
O que é um facto, é que as fundações estão construídas com uma modulação de 1,60, e agora temos de nos amanhar com um taipal de metro e meio. Mais jazz em improviso. O problema, é que o bar onde estamos a tocar tem encerramento marcado e o concerto acaba dentro de poucas semanas – este gasto adicional de tempo vem muito pouco a favor…
Como o tal frontal para os vãos ainda não está ultimado (como por aqui se diz), damos início à vida de taipeiros destes jovens por um cunhal da casa, com um taipal em rampa. Para quem percebe um pouco destas coisas, já se está a ver que este erro de métrica (sendo que o taipal é mais pequeno do que a distância a vencer e não o contrário) vai obrigar a mais taipais e mudanças de taipal e muuuuuitas rampas…
Mas o entusiasmo é muito, e o descofrar do primeiro taipal é uma verdadeira emoção, mesmo se eles já esperavam o efeito, por terem feito 13 blocos de 30x30x30cm, nos ensaios.
Para marcar o momento, numa brincadeira moralizante, resolvo passar uma folha por todos, para a assinarem e, depois de também eu a assinar, dato-a e coloco-a num plástico transparente e dentro do primeiro bloco de taipa, a meio do seu preenchimento. Todos ficam felizes por ficarem “imortalizados” naquela massa imponente que nasceu das suas próprias mãos.
Aliás, a emoção telúrica desta obra sente-se mais nestes miúdos, por ser a primeira vez que se confrontam com este tipo de construção, e isso está no que dizem às (muitas) pessoas que passam e se acercam do local, para tentarem perceber que raio de fortaleza é esta: “Isto é a terra do chão, pilada por nós, à mão, com o nosso suor!”
Lembra-me um momento particularmente simbólico que presenciei, há bem pouco tempo, quando tive oportunidade de visitar uma obra de taipa em curso, com projecto do arqº Bartolomeu Costa Cabral, colega e parceiro do arqº Nuno Teotónio Pereira e, tal como este, figura maior da arquitectura portuguesa, por quem tenho enorme admiração e simpatia. Era uma obra em Beja e, com uma modéstia admirável, ele tinha pedido alguns conselhos a quem anda por estes temas, mais assiduamente à arqª Teresa Beirão, e eu fui com ela ver o andamento da obra, num dia em que ele lá estaria. A uma certa altura, julgo que ao telefone, lembro-me de o ouvir dizer que sentia uma emoção muito especial ao presenciar a génese desta massa imponente, que vinha da própria terra. As palavras não terão sido exactamente estas, mas o conceito era-o e tocou-me particularmente, sobretudo por se tratar de quem se tratava.
Realmente a componente emocional de uma obra de taipa é pouco racionalizável (obviamente, por definição), e mais ainda no caso daquela em que participo aqui, por se tratar de uma obra totalmente artesanal e em espírito de “desenrascanço”, e por ser feita por miúdos sem qualquer experiência nem conhecimentos prévios, e que não tinham grandes expectativas de futuro. Essas expectativas começam agora a surgir nalguns deles, cada vez mais, à medida que o gosto por esta técnica se desenvolve e cresce um orgulho e uma postura briosa em relação ao trabalho que fazem.
Como não tenho nenhuma ansiedade especial para o fim-de-semana que se avizinha, pergunto aos alunos se querem vir no sábado de manhã fazer mais um pouco de taipa.
Alguns dizem que sim e a noite passa-se no Centro de Lazer, na festa de despedida da Francisca – alma maior que por estas bandas esteve nos últimos três meses, como voluntária a desenvolver um trabalho excelente de recenseamento e actualização de dados das crianças do bairro, para o projecto de apadrinhamento de crianças com carências (leia-se todas!) e que agora ruma ao Xai-Xai, algumas centenas de quilómetros ao norte daqui, na costa, onde nos últimos dias apareceu um hipopótamo na praia, que foi arrastado pela corrente do rio que desagua mesmo lá ao lado. Para quem não sabe, o animal que mais mata em África é o hipopótamo (se excluirmos o mosquito da malária, que não extermina directamente nem no momento exacto do ataque, e também o homem, que é um animal muito particular) e isto porque é muito territorialista e, apesar de inofensivo em situações comuns, não se queiram meter entre um e o seu charco…! Claro que a boa da populaça tratou logo de matar o bácoro de água e, segundo ouvi dizer, andam há uns bons dias a comer hipopótamo por aquelas bandas.Obrigado à Francisca pelo esforço na ajuda à preparação do nosso curso – foi com ela que trocámos informação antes da nossa vinda e foi ela que transmitiu as nossas indicações a todos os intervenientes, incluindo os desenhos para execução do estojo de taipa e do adobeiro.

quinta-feira, junho 15, 2006

15 Junho 2006 - Dia 29





































































































Foto: Francisca baptista da Silva
















Foto: Francisca baptista da Silva

















Foto: Francisca baptista da Silva

O local da obra tem de ser preparado para a chegada de 31m3 de terra: 14m3 para o armazém, para produzir BTC e 17m3 para a obra, para a taipa.
Com o terreno preparado, dedicamos todo o dia a realizar todos os ensaios aos adobes e aos blocos de taipa que fizemos.
Nos adobes, testamos o aspecto, a resistência à compressão, à tracção e à abrasão/desgaste, e a capilaridade. Mais uma vez, os aparelhos com que realizamos os testes são improvisados, reinterpretações do princípio do teste. Em vez de um elaborado quebra-blocos, monto um com uma prancha de madeira, um cabo de enxada - que deixa a prancha rodar sem impedimentos - e três ripas de madeira que aplicam as forças e os apoios onde é pretendido. Em vez de uma sofisticada peça de medição de abrasão, uso uma escova corrente com uma plataforma onde posso colocar um peso constante, idêntico para todos os ensaios, e com um cabo, de forma a que a intervenção do executante do teste não influa sobre a força exercida por esse peso, e pode-se, assim, medir a comparativamente a resistência a uma força de erosão idêntica.
Na minha opinião – que formulei desde a primeira vez que vi a terra, na tal ocasião em Milfontes, em Janeiro – esta terra não é mesmo nada aconselhável para qualquer tipo de adobes (exceptuando, eventualmente, adobes fortemente estabilizados, mas isso perde um pouco do sentido inicial do conceito de construção com terra, não será…?). Os que fizemos serviram para exemplificar a técnica de produção e para se familiarizarem com o material, que, de resto, existe em abundância no norte do país, daí ser menos importante focar esta técnica, por ser conhecida da maioria.
Na taipa, testamos empiricamente, e de forma menos quantificável do que nos adobes, a resistência à punção, à abrasão/desgaste, ao impacto e à compressão, e deixamos os ensaios de resistência à água (infiltração e capilaridade), uma vez que, no dia em que choveu sem tréguas, os blocos de ensaio, que estavam no exterior, desprotegidos, foram bem testados!
As conclusões são tomadas logo de seguida, e anuncio aquilo que tenho vindo a equacionar nos últimos dias: A taipa será executada sem qualquer estabilização com cimento ou cal, mas, como constatámos que os blocos que fizemos com traços sem qualquer adição de ligantes têm uma fraca resistência à erosão e como aqui o vento é muito e, por vezes, forte e transporta imensa areia que fustiga as paredes, a primeira fiada (logo a seguir ao embasamento) terá uma estabilização com cerca de 3 a 4% de cimento, com um traço semelhante ao do ensaio nº8. Nos testes, o bloco 8 apresentou comportamentos muito semelhantes ao bloco 3 e ao 6, e tem apenas 3,6% de estabilização, contra os 10% do bloco 3, o que representa uma economia enorme de custos e uma minimização do “pecado de conspurcar a terra” (se bem que, quem me conhece sabe que não sou, de todo, fundamentalista ou, sequer, purista, nestas questões).
Tomada esta decisão, amanhã arrancaremos com a taipa!
Entretanto, descontraindo em confraternização, em final de jornada laboral, descubro uma coisa importantíssima: afinal há tremoços por estas bandas!

quarta-feira, junho 14, 2006

14 Junho 2006 - Dia 28













































































Como houve um desequilíbrio de esforços, entre os alunos, na tarde dura de ontem, achei por bem dispensar os que ficaram ontem até tarde das aulas do início da manhã, até às 9h.
A essa hora, começo uma curta e incisiva aula teórica sobre a produção de BTC e sobre a formação de uma linha de montagem e todo o factor de produtividade, de desempenho e de controlo de qualidade, após o que realizamos uma primeira série de experiências de produção de blocos, para adaptação à prensa e para definição de volume de terra a utilizar. O objectivo da produção de BTC é mecanizar e tornar repetitivos, tanto quanto possível, os movimentos, os tempos e as quantidades, de forma a encontrar a forma mais produtiva, menos cansativa e menos propícia a erros, garantindo uma economia de material e recursos e uma optimização de qualidade e quantidade de produção. Ou seja, perde-se um dia inteiro, ou até mais, a fazer testes e a esquematizar métodos de trabalho, um pouco à semelhança de um treinador de um qualquer desporto de equipa, e depois está tudo a funcionar como um relógio, garantindo o rendimento máximo e o esforço mínimo. A articulação entre os tempos e os locais de preparação da terra, de mistura a seco e a húmido, de prensagem e de armazenamento para cura seca e cura húmida propicia diagramas com aspecto de verdadeiro gráfico de estratégia militar de invasão ou defesa de um território, com todos os percursos esquematizados e todas as acções interrelacionadas. Confesso que a minha veia racionalista se delicia com estas manobras. O facto de se tratar de trabalhar com terra, enche-me as medidas no que toca à emoção.
Mas, mais uma vez, o improviso surge porque a balança que eu tinha pedido, ainda em Lisboa, e que serviria para pesar os blocos, apesar de vir anunciada por uma senhora asiática de aspecto bastante simpático, não pesa nada que exceda os 3kg. Ora, como cada bloco deve rondar os 10kg, a coisa não fica fácil. Começo a sentir-me uma espécie de MacGiver (ao ponto a que se chega…) e esgalho uma maneira “alternativa” de definir o teor optimal de água. Como o princípio é o de encontrar a densidade máxima conseguida num bloco e essa densidade tem a ver com peso, lembro-me daquela adivinha de como descobrir uma moeda falsa, mais leve do que as outras, no meio de outras oito, apenas com duas pesagens numa balança de pratos – pesa-se um grupo de três moedas em cada prato; assim descobre-se o grupo de três em que está a moeda mais leve (será o grupo mais leve ou, se os dois forem de igual peso, será o que ficou de fora da balança); pega-se, em seguida, nesse grupo mais leve e procede-se ao mesmo exercício, mas apenas com uma moeda em cada prato e, ou é uma dessas, ou é a que está de fora. Então, com base nesta adivinha para crianças, resolvo improvisar uma balança de pratos – com dois baldes, um cabo de uma enxada, dois pedaços de corda e uma estrutura de um jipe descapotável, que estava lá para um canto do armazém – para ir comparando, dois a dois, os vários blocos produzidos, para encontrar o mais pesado de todos. Esse será o mais denso e, consequentemente, aquele que tem o teor de água optimal – que eu anotei previamente, claro…! Arcaico, mas resulta.
A minha estadia aqui e o trabalho que aqui tenho desenvolvido tem tido momentos difíceis (apesar de nunca, nem por um só momento, ter perdido o ânimo e a vontade), momentos mais tranquilos, e alguns pontos altos, de grande significado para mim. Um desses pontos altos, muito gratificante, foi quando o primeiro bloco de todos saiu da prensa: eu observei-o e disse que não estava bom, e disse para o partirem e deitarem a terra de volta para o monte, até porque estávamos apenas a definir volumes de carga do molde, sem ter adicionado cimento à terra, para não desperdiçar. Nesse preciso momento, todos os alunos arregalaram os olhos, soltaram um “o quê?!”, e um deles pegou no bloco e virou-se de costas para mim, protegendo o primeiro bloco da sua vida, e todos o quiseram guardar num canto, a salvo da minha insensibilidade… Concordei com a opção romântica, sorri por fora, e fiquei absolutamente deliciado por dentro!
Tal como previa, o BTC terá uma grande aceitação. Pois se até em Portugal, a generalidade das pessoas prefere todo o tipo de materiais que têm um aspecto mais industrializado e mais estandardizado, associando essas aparências a vantagens de desempenho, o que fará uma realidade como a africana.
De resto, e ao contrário da opinião erroneamente generalizada, é exclusivamente por essa razão que as acções da equipa com quem estudei, o CRATerre, em África e em outros locais do terceiro mundo se apoiam na construção com BTC, quando eles próprios sempre foram grandes admiradores da taipa – técnica que, aliás, domina absolutamente a região de França onde esta escola/laboratório se situa.
Em primeiro lugar, é infinitamente mais fácil conseguir que as populações “aceitem” a construção em terra se ela lhes for apresentada através de um produto sofisticado como o BTC (se tiver uma máquina, melhor ainda!).
Em segundo lugar, a facilidade de execução (produção e aplicação) é incrivelmente superior à de outras técnicas, sobretudo quando se compara com a taipa, por exemplo, e requer uma formação muitíssimo menor e menos especializada.Depois, o BTC tem uma aplicação em obra que as populações geralmente já dominam – em todo o lado do mundo se utiliza blocos de betão ou tijolo cerâmico para construir, e isso transmite conhecimentos comuns a toda a construção em alvenaria, incluindo noções de aparelho. É só adaptar alguns aspectos e reutilizar um saber adquirido. (Claro que isto também é válido para o adobe, por exemplo).

terça-feira, junho 13, 2006

13 Junho 2006 - Dia 27






























Hoje, uma boa parte dos meus concidadãos deve ter acordado tarde e deve estar a beber muita água e a pedir a toda a gente para falar mais baixo, porque ontem foi noite de Santo António e eu, ainda que “sinta fogo no rabo” e goste de andar sempre de um lado para o outro, nunca deixarei de me sentir um Lisboeta, afinal de contas, e o meu ninho fica ali, à beira do Tejo.
Por cá não há manjerico, nem marcha popular, nem se salta a fogueira, mas houve uma celebração pessoal: esta manhã, montámos a prensa de BTC e estive a estudá-la.
A prensa que a ONG adquiriu foi resultado de uma pesquisa que fiz, e pareceu a forma menos complicada e mais barata de adquirir uma. Veio da África do Sul e, até ao momento da sua chegada, eu não sabia o que iria exactamente ter em mãos, uma vez que a informação que me disponibilizaram era relativa apenas aos modelos automáticos, enquanto que nós queríamos uma manual, não só por questões de preço, mas por adequação à realidade futura provável dos nossos alunos. Para além disso, a utilização desta máquina, quer ao operá-la quer ao transportá-la, quer na sua manutenção, é incrivelmente mais simples e exige menos recursos. Trata-se de uma máquina muito simples, de montagem facílima, que cabe na parte de trás de qualquer veículo, e que requer apenas um pouco de lubrificação nos rolamentos e no curso do “piston”, ao final do dia de trabalho.
Bem sei que este último período parecia uma daquelas sessões do TV Shop, com aqueles aparelhos para exercício milagroso que nos fará todos e todas iguais, respectivamente, ao Rambo e à senhora do fato de banho e da bóia, mas a simplicidade e a portabilidade do aparelho eram determinantes na sua escolha, daí a apresentação do artigo.
Assim, constatámos que a prensa, ao contrário do que eu julgava, por analogia directa com os modelos automáticos do mesmo fabricante, produz blocos paralelepipédicos, com as dimensões de 29x14x11,5cm, sendo apenas um pouco mais altos do que aqueles com que estou habituado a trabalhar – os produzidos pela prensa da Appro-Tech, a Terstaram. Isso é óptimo, porque alarga as possibilidades de utilização dos blocos, mas o problema é que só faz um de cada vez e, para além disso, só tem uma alavanca individual, o que reduz a força de compressão e aumenta a possibilidade de três ou quatro pessoas se pendurarem nela à bruta e passarmos a ter duas metades de prensa… Para além de tudo isto, o molde interior (fixo) tem uma solda que pingou em excesso, e tem uma saliência, o que faz com que todos os blocos saiam com um sulco numa das faces menores. Tirando tudo isto, até que gosto da simplicidade do engenho e, sobretudo, desse aspecto portátil e ligeiro.Mas, antes de começarmos a produzir blocos, teremos de crivar toda a terra. E isso ocupa-nos o dia todo, com o crivo que improvisei com umas madeiras, umas sobras da rede de galinheiro do embasamento, cruzada em dois sentidos para reduzir a malha, e uns bocados de varão de obra para reforçarem a área de crivagem. A terra crivada é armazenada no canto do armazém onde produziremos os BTC, e o dia é esgotante…

segunda-feira, junho 12, 2006

12 Junho 2006 - Dia 26
















Segunda-feira é-o em qualquer parte do mundo, presumo. Moçambique não é excepção, e os alunos escorregam pela aula sem grande fibra.
Um dos grupos, por minha indicação na sexta-feira, faz uma nova apresentação do trabalho de análise de terras, porque a primeira fora manifestamente desajeitada e insuficiente.
Após isso, vamos conversando um pouco sobre o assunto da terra, as suas particularidades, as várias técnicas, tudo num ambiente descontraído e salutar, ao mesmo tempo que vamos realizando outros 5 ensaios de taipa – alguns para fins demonstrativos, para os alunos perceberem na prática o que foi dito nas aulas teóricas, outros para eu próprio tirar “a prova dos 9”.

T9
100% terra (40l)

T10
100% terra (40l)
(num estado mais húmido)

T11
75% terra (30l)
25% pó-de-pedra (10l)

T12
66,6% terra (26,6l)
33,3% pó-de-pedra (13,3l)

T13
66,6% terra (26,6l)
25% pó-de-pedra (10l)
8,3% gravilha (3,3l)

Continuo na senda da taipa sem estabilização. Recentemente, recebi uma óptima notícia: um mail da Teresa Beirão a dizer que concorda com a minha proposta/desafio de fazermos a taipa sem cimento nem cal. Óptimas notícias!

domingo, junho 11, 2006

11 Junho 2006 - Fim-de-semana





















Foto: Francisca Baptista da Silva

















Foto: Francisca Baptista da Silva




















Regresso a Mumemo, para assistir ao primeiro jogo da selecção nacional portuguesa na tasca do Sr. Mussá, na extremidade do bairro oposta à da casa onde me alojo.
Exceptuando a Francisca e eu próprio, a população do bar é naturalmente constituída por moradores do bairro, sendo que a maior parte deles torcem por Angola, embora tenham algum pudor em manifestá-lo, por causa da nossa presença. Mas nos poucos lances de perigo do ataque da selecção angolana, entusiasmam-se e não conseguem disfarçá-lo.
Se no início pensava que Portugal estaria em primeiro lugar no coração destes Moçambicanos, agora vejo que nem sempre é assim, ou pelo menos, nem para todos.
Há um sentimento de “Africanidade” que não me parece que tenha correspondência em nenhum outro continente! Se há alguma equipa africana envolvida em alguma disputa, o apoio é incondicional para essa equipa. Portugal talvez ainda sobreviva a isso e seja a equipa preferida, mas se a equipa africana for lusófona, isto é, de um dos PALOP, então Portugal passa a segundo plano para quase todos.
Isto, por vezes, torna-se um pouco absurdo quando, por exemplo, vejo o fervor com que falam das equipas do norte de África, como a Tunísia, neste caso, mas também seria com Marrocos, sem terem a noção de que, provavelmente, há mais ligações e coisas em comum entre Marroquinos e Portugueses do que entre aqueles e os Moçambicanos. Mas como são de África, todos os outros argumentos são desprezíveis… Um sentimento a que não estava habituado, este de pertencer orgulhosamente (e combativamente) a um continente.
Ainda assim, assistir ao campeonato mundial em tascas africana é uma experiência…!
No último mundial estava em França, com colegas de quase todos os países que participavam no campeonato, e a experiência foi muito forte, com toda a festa e a disputa saudável que se vivia naqueles dias, mas, desta vez, o contexto é ainda menos tangível…!